quarta-feira, 1 de outubro de 2008


Não é fácil se tornar um guardião da Ordem Secular dos Leitores. Mas este esforço é sempre recompensado pelo prazer da leitura, pelo muito que ela dá em troca de alguns minutos de atenção. Por isto, este seu blog dos segredos oferece a você duas singelas primazias. A primeira delas é o capítulo inicial de O segredo da volatilidade. O livro aguarda oportunidade de ser lançado, dá seqüência à série dos segredos e tem como tema central distúrbios alimentares.
Um espião industrial consegue pairar no ar, mas a cada minuto voando ele perde peso, então ele precisa comer, e comer muito, para engordar e assim ganhar autonomia de vôo.


Nenhum pé no chão

A sala central do laboratório de pesquisas se encheu de uma névoa esbranquiçada. Os riscos esverdeados dos sensores de segurança cintilaram como lâminas incandescentes, revelando os trajetos possíveis até o terminal de dados do computador central. Cortavam em diagonais de ângulos irregulares, incidindo sobre o piso de forma que uma pessoa não conseguisse alcançar o painel de controle com os pés no chão. Era um sistema de segurança engenhoso, tudo ligado por alarmes à sala de vigilância.

O guarda, desacordado, não viu uma das telas do seu monitor tingir-se de negro, à medida que um spray era espirrado contra a lente da câmera do circuito interno.

Por melhor que fosse, o sistema não poderia prever que o invasor – um sujeito rotundo, enfiado num traje de mergulho preto com galochas ao invés de pés de pato – este improvável mergulhador pudesse ficar sem nenhum dos pés no chão. Este, que atende pelo nome de Ícaro, deu o primeiro passo rumo ao interior do emaranhado de linhas verdes, premido pelo tempo. Tinha de ser rápido por diversas razões; qualquer uma delas seria suficiente para pôr tudo a perder. O segundo passo preparou o movimento seguinte, algo incabível.

Depois de uma nova borrifada de névoa branca, centímetros acima do facho verde luminoso, Ícaro apoiou o pé direito no espaço, como se ali houvesse alguma base. Mais borrifadas e as lâminas, implacáveis, sibilaram rentes. O corpo do rotundo invasor foi diminuindo de largura, se esticando. Aos poucos, Ícaro escalou o vazio por entre os sensores luminosos e alcançou os arquivos de dados do laboratório.

Lá estava ele, suspenso no ar, com um cabo de transferência de dados de alta velocidade conectado ao dispositivo digital preso à cintura, copiando arquivos sigilosos – ingredientes, experimentos, proporções, relatórios de preferências – uma infinidade de trabalho, resultado de pesquisa nutricional dispendiosa.

Ícaro ficou assim apenas por instantes – um ser flutuante fora d'água. Não durou meia dúzia ou dezena de minutos, mesmo assim despendeu grande energia, o equivalente em quilogramas, o preço a pagar pela ousadia; outra razão para se apurar, não ser apanhado por inquéritos policiais, julgamentos e, se conseguissem, prisão.

Isto nunca se dera, mas Ícaro conhecia bem uma das leis do imponderável, todo mundo, um dia, cai. Por isso, evitava alturas, abismos, precipícios, assim, aumentava suas chances de sair ileso. Ícaro erguia-se rente ao solo, o suficiente para evitar sensores, e fazia render ao máximo sua incrível habilidade.

Como sistemas de segurança, planos de invasão também não podem prever o imponderável, prever todas as possibilidades, ou eliminar todos os vestígios. Um deles chamou a atenção do delegado Valfrido de Moura Randal, com suas luvas descartáveis, analisando a cena do crime. Desta vez, sua investigação não teria imagens forjadas ou qualquer vil artifício, expondo sua reputação ou sanidade mental.

– Voando? – disse agachado junto a uma poça bem no centro da sala.
Randal tocou o líquido, mediu sua viscosidade.

O doutor Molina Cerqueira, diretor do laboratório, não disfarçava sua decepção.

– Sim, delegado, esta é a única maneira de alguém se aproximar sem ser percebido pelos raios sensores. É um sistema ultramoderno...

– Sei... – Randal ergueu-se, dando as costas para a parafernália eletrônica até há pouco, inexpugnável. – Suor...

– O que disse?

– O líquido nesse piso... Acho que é suor.

Julião, da equipe de investigadores, se aproximou com um tubo de plástico. Enquanto recolhia a amostra, soltou um comentário em nada inocente.

– Suor de um beija-flor.

Randal não gostou da brincadeira; já Cabreira, o outro investigador da equipe, ria de tudo.

– Suor do Alladin – arrematou divertido para maior constrangimento do doutor Molina.
Julião conhecia bem aquela história.

– Alladin tinha um tapete voador, não fazia esforço.

Randal ia repreendê-los quando o doutor Molina interveio.

– Senhores, por favor! Se precisarem de ajuda, estarei à disposição em minha sala. Se me derem licença...

Julião e Cabreira, debaixo do olhar feroz de Randal, escoltaram a saída do diretor com ares de contrição, pelo menos era esta a impressão que deviam deixar ao doutor Molina, com o devido respeito. Sua equipe não era ralé, pelo contrário, em certos casos eram capazes de atuar como um grupo de especialistas. E aquele era um caso típico, bem ao gosto do freguês.

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